sábado, 6 de abril de 2013

Ser abelha

 
Na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar. Torna-se perigosa, ao contrário, quando, em lugar de nos despertar para a vida pessoal do espírito, a leitura tende a substituir-se a ela, quando a verdade não aparece mais como um ideal que não podemos realizar senão pelo progresso íntimo de nosso pensamento e pelo esforço de nosso coração, mas como uma coisa material, depositada entre as folhas de um livro como um mel todo preparado pelos outros e que não temos senão de fazer o pequeno esforço para pegar nas prateleiras da biblioteca e, em seguida, degustar passivamente num repouso perfeito do corpo e do espírito.
 
Marcel Proust

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Com olhos e pés


Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou tv. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.

Amyr Klink

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

De um modo ou de outro








Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo. Gênero não me pega mais. Além do mais, a vida é curta demais para eu ler todo o grosso dicionário a fim de por acaso descobrir a palavra salvadora. Entender é sempre limitado. As coisas não precisam mais fazer sentido. Não quero mais ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. Porque no fundo a gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro.

Clarice Lispector

domingo, 5 de agosto de 2012

Dicionário PESSOA(L)


M


(Mar - aMar - Ah! Már...)




Mãos- As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que habitam na nossa vida... às vezes, quando fito minhas mãos, tenho medo de Deus...


Mar- O mar é a religião da Natureza.


Memória- A memória é a consciência inserida no tempo.


Mente humana- Tudo que se passa numa mente humana de algum modo análogo se passou já em toda outra mente humana.


Metade- Tudo que faço ou medito / Fica sempre na metade. / Querendo, quero o infinito. / Fazendo, nada é verdade.


Morrer- Podemos morrer se apenas amamos.


Mundo- Ah, o mundo é quanto nós trazemos.


Música- Aquilo que vem buscar o choro imanente / De toda criatura humana, / Aquilo que vem torturar a calma, / com o desejo de uma calma melhor... / [...] A música!... A música!...



S


(Ser - Silêncio - Ssshhh...)




Sábio- Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo, / E ao beber nem recorda / Que já bebeu na vida, / Para quem tudo é novo / E inacessível sempre.


Saudades- Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!


Se- Se... Se... Sim, mas é sempre uma cousa que não aconteceu; e se não aconteceu, para que supor o que seria se ela fosse?


Sensação- Quando olho para mim não me percebo. / Tenho tanto a mania de sentir / Que me extravio às vezes ao sair / Das próprias sensações que eu recebo.


Sentir- Sentir é estar distraído.


Ser- Afinal deste dia fica o que de ontem ficou e ficará de amanhã: a ânsia insaciável e inúmera de ser sempre o mesmo e outro.


Síntese- Não sejamos sínteses, sejamos somas: a síntese é com deus. Não compreendemos nada; andamos à escuta.


Sonhos do mundo- Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.



sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Pra tecer barulho


Antes do barulho há a vibração dos corpos, o inspirar do mundo antes de devolver o som. 
Há o grito que mora na gente, a correr, a bater,  a procurar frestas pra se tornar audível. 
O varal a esperar a nudez, a mudez a esperar a palavra.
Provar o indefinível é comer ventos,  é morada do além ponto, das reticências do encanto.
É o terno encontro de mãos de Marias a tatear as nuvens.

M.

Pra ser barulho




Há algo de indefinível
em cada criação

Criar é algo como um grito
do que já existe em algum lugar
e finalmente chega até nós
É o sussurro do que é íntimo
O cochicho de um segredo
A mudez pendurada num varal
esperando o vento pra ser barulho

Criar é aqui
palavras, imagens,
vontade e coração

É com-provar o indefinível
no movimento feliz da surpresa

É eterno encontro
É um outro ponto

De mãos dadas, Marias
e seus passos indefiníveis.

S.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Marco das Águas



É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol

É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira

É o vento ventando, é o fim da ladeira

É a viga, é o vão, festa da cumueira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira

É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão

É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé

São as águas de março fechando o verão,
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
Pau, pedra, fim, caminho
Resto, toco, pouco, sozinho
Caco, vidro, vida, sol, noite, morte, laço, anzol

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.

Tom Jobim